Estados Unidos e Argentina: uma história se reinventa a cada novo capítulo

O novo apoio financeiro dos Estados Unidos ao governo de Javier Milei marca mais um capítulo de uma história que, embora frequentemente apresentada como excepcional, possui raízes profundas na política e economia argentinas. O que à primeira vista pode parecer um gesto pontual, uma ajuda da administração Trump diante da escassez de divisas e o risco de um novo colapso financeiro, na realidade se inscreve em uma trajetória de mais de um século de relações nas quais Washington teve papel decisivo no destino da Argentina.

Ao longo da história moderna da Argentina, sempre que houve uma aproximação com os Estados Unidos, isso coincidiu com momentos de crise ou de redefinição do modelo econômico. E, quase sempre, o apoio financeiro veio acompanhado de exigências políticas, ideológicas ou diplomáticas. O atual alinhamento entre Milei e Trump, selado simbolicamente com sua breve, mas estratégica reunião em Washington, segue essa mesma lógica. A grande diferença agora é o contexto global: já não existe mais uma única potência hegemônica, mas um mundo fragmentado onde o pragmatismo se torna mais crucial do que nunca.

Das relações carnais à nova direita global

A frase imortalizada pelo ex-chanceler argentino Guido Di Tella em 1991, “Não queremos ter relações platônicas com os Estados Unidos: queremos ter relações carnais e abjetas”, resumiu como poucas o espírito dos anos 90. Com Carlos Menem no poder e Bill Clinton na Casa Branca, a Argentina procurou se afirmar na nova ordem unipolar após o fim da União Soviética. O resultado foi um alinhamento total com Washington: participação em missões de paz, abertura econômica, privatizações e um influxo maciço de capitais estrangeiros, impulsionados pelo entusiasmo dos mercados e pelo apoio do FMI.

Três décadas depois, e após o fracasso do Consenso de Washington, evidenciado pela crise de dezembro de 2001, Javier Milei parece determinado a reeditá-lo, tanto no plano político quanto financeiro. Sua afinidade com Donald Trump vai além do protocolo: ambos representam a “nova direita global”, uma narrativa que mistura, com diferenças, discurso antisistema, ultraliberalismo econômico e retórica nacionalista. Nesse cenário, a Argentina volta a apostar em uma relação privilegiada com os Estados Unidos, esperando que o apoio norte-americano reacenda a confiança internacional e ajude a estabilizar a economia.

No entanto, o cenário atual é radicalmente diferente. Nos anos 90, os Estados Unidos eram a potência indiscutível. Hoje, enfrentam um declínio relativo de sua hegemonia, enquanto China e outras potências regionais desafiam sua influência econômica e comercial. Por isso, um alinhamento absoluto com Washington pode ser arriscado para um país cuja estrutura de exportações depende em grande parte da Ásia e do Mercosul.

Uma história de resgates e condicionamentos

De acordo com um levantamento feito pelo Infobae, o Tesouro dos Estados Unidos forneceu à Argentina ao menos uma dúzia de programas de assistência financeira desde a metade do século XX, incluindo linhas de crédito, garantias e apoio indireto através do FMI. Esses resgates se repetem como um padrão histórico: Washington costuma intervir para sustentar governos aliados ou evitar desestabilizações políticas que possam colocar em risco seus interesses na região.

Durante a ditadura dos anos 70, a ajuda financeira dos Estados Unidos foi acompanhada de cooperação militar e diplomática; nos anos 90, esteve ligada à política de Convertibilidade e ao acesso aos mercados internacionais; e no início dos anos 2000, ocorreu com a mediação nas reestruturações de dívida. O apoio a Milei, que busca conter a crise cambial e evitar um novo default, segue essa mesma tradição, embora dentro de uma narrativa mais ideológica do que estratégica.

Para Milei, o gesto de Washington tem um valor duplo. De um lado, oferece alívio econômico no momento mais crítico de sua gestão. Do outro, busca conquistar legitimidade internacional diante do eleitorado argentino. Os Estados Unidos, como em outras fases da história do país, não escondem sua preferência: diversos porta-vozes diplomáticos e veículos de comunicação aliados têm sinalizado seu apoio à continuidade do programa de reformas liberais, considerando-o uma garantia de estabilidade regional.

O poder dos gestos e os interesses que estão em jogo

O encontro entre Trump e Milei foi breve, quase improvisado, mas seu valor simbólico foi significativo. Os dois países selaram uma aliança política que vai além do aspecto bilateral. Ao redor desse vínculo, surgem redes de assessores e lobbistas que facilitaram o diálogo entre os dois governos e entre grupos empresariais interessados em aproveitar o novo clima de abertura. Trata-se de um ecossistema informal, onde política e negócios se entrelaçam, algo que historicamente tem acompanhado cada aproximação entre Buenos Aires e Washington.

Além dos intermediários, a principal motivação desse alinhamento é econômica. Com reservas escassas, inflação persistente e um programa de ajuste fiscal em curso, a administração Milei precisa recuperar a credibilidade. O apoio norte-americano, seja por meio de garantias do Tesouro ou gestões junto ao FMI, serve como um sinal para os mercados: a Argentina volta a estar “sob o guarda-chuva” dos Estados Unidos.

O espelho dos anos 90 e um mundo diferente

No entanto, o contexto global impõe limites. Diferente do período do menemismo, Milei enfrenta uma economia muito mais dependente da China, que hoje é o segundo maior parceiro comercial da Argentina e o principal comprador de sua produção agroindustrial. Além disso, o Mercosul segue sendo um pilar fundamental do comércio exterior, com o Brasil à frente. O atual alinhamento ideológico com Washington coloca pressão sobre essas relações e levanta questionamentos sobre a viabilidade de uma política externa baseada exclusivamente em afinidades pessoais.

Como destacam vários analistas citados pelo El País, o “revival” das relações carnais têm menos fundamento na realidade econômica e mais na narrativa política. O próprio Milei precisou moderar suas posturas diante da evidência de que uma ruptura com a China ou com o Mercosul seria devastadora para as exportações argentinas. Mesmo assim, seu discurso mantém o tom confrontativo: seu objetivo é mostrar que a Argentina está ao lado do “mundo livre” e que esse alinhamento trará investimentos, crédito e crescimento.

Impacto no mercado e o ressurgimento das IPOs

A recomposição dos vínculos com os Estados Unidos gerou expectativas nos mercados financeiros. Várias empresas argentinas estão avaliando a possibilidade de abrir o capital nos próximos meses, aproveitando a queda no risco-país e o novo interesse de fundos norte-americanos. O retorno das ofertas públicas iniciais (IPOs) é visto como um sintoma de confiança na recuperação do mercado local e um sinal de que o capital estrangeiro está novamente de olho no país.

Esse processo pode ser interpretado como um benefício direto do respaldo político e financeiro de Washington. As empresas com potencial exportador ou tecnológico buscam financiamento internacional e entendem que a estabilidade macroeconômica, embora ainda frágil, melhora com o apoio dos Estados Unidos. No entanto, persiste o dilema central: a Argentina pode manter um crescimento baseado no investimento externo sem cair novamente em ciclos de dependência?

Entre a oportunidade e os condicionamentos

A história bilateral mostra que as aproximações com os Estados Unidos geraram tanto avanços quanto retrocessos. Abriram portas para a modernização, para investimentos e crédito, mas também condicionaram a autonomia econômica e as decisões soberanas. O desafio dessa nova etapa será transformar o apoio dos Estados Unidos em uma plataforma de desenvolvimento e não em um novo capítulo de dependência estrutural.

Para os investidores internacionais, a Argentina oferece hoje um paradoxo atraente: um governo decidido a aplicar reformas liberais, um respaldo explícito de Washington e um mercado com ativos subavaliados que prometem alta rentabilidade. Mas, como sempre, o sucesso dependerá da capacidade do país de transformar gestos políticos em resultados econômicos sustentáveis.

À luz da história, o novo resgate norte-americano não é um ponto de partida, mas sim um déjà vu. Estados Unidos e Argentina voltam a se encontrar, como tantas vezes, na interseção entre a necessidade e a oportunidade. O que mudou, e o que pode fazer a diferença desta vez, é o mundo ao redor: mais multipolar, mais competitivo e menos disposto a perdoar os erros do passado.

Written by: Patricio Erb